“O que vem depois da Esperança?” é o espetáculo que o Teatro Universitário do Porto (TUP) estreia nesta quinta-feira, 31 de março, às 21h30, no espaço de apresentação da mala voadora, no Porto. A data coincide (propositadamente) com o Dia Internacional da Visibilidade Transgénero, importante para a afirmação e celebração da comunidade LGBTI+. O espetáculo, em cena até domingo, 3 de abril, tem o apoio do Criatório, programa municipal de apoio à criação artística.
A verdade, tonitruante, crua, a seco, numa penumbra quase total, antecedida pelo silêncio, deixa a sala mergulhada em si própria: “Quantas vezes foste atendido por um travesti na Farmácia Barreiros? E na Confeitaria do Bolhão?”
O silêncio persiste. Uma personagem, que mais não é que a mestre de cerimónia(s) numa performance-palestra-oficina sobre as questões (trans)género, olha-nos nos olhos. Num traje que lembra uma cantora de ópera ou, simplesmente, “alguém à espera de ir para a fogueira”, coloca as questões que importam. Sem procurar respostas.
Aliás, grande parte das perguntas fica sem resposta. Porque a resposta, a acontecer, devia envergonhar cada um dos espectadores que, num registo informal, acompanha um dos últimos ensaios do novo espetáculo do TUP, com estreia apontada para uns dias depois.
No fundo, cada um deles representa cada um de nós.
Em noite de jogo da seleção nacional – e como a Macedónia do Norte foi facilmente ultrapassada por uma equipa com fome de vencer, unida no alcance coletivo de um objetivo comum -, o desafio em pleno auditório é outro: o de perpetuar os nomes e as personagens (reais, de carne e osso) que permitiram construir a memória de um passado recente e potenciar um futuro diferente.
Tal como num jogo de futebol, o objetivo deste momento, neste local, é tão somente o de unir o todo numa luta comum: permitir que “travestis, transsexuais, transgéneros, géneros fluidos e não binários” possam, eles próprios, ter os mesmos direitos que os demais, os denominados “cisgéneros”.
“Este trabalho é o resultado de um processo de pesquisa que levou mais ou menos dois anos”, após o convite endereçado pelo TUP para a encenação da nova produção, assume Hilda de Paulo, encenadora e principal voz desta “tomada de consciência”.
No essencial, e para a execução deste trabalho, procurou, primeiramente, traçar uma história da cultura transgénero em Portugal, “juntar todo o trabalho feito nesta área, que estava disperso, reunindo um amontoado de referências e ‘cacos’ e criando uma compilação do material existente”.
Dessa pesquisa, Hilda criou o Arquivo Gis, “um repositório de artigos de jornal, de livros biográficos e autobiográficos e de vídeos do Youtube”, assume.
Um manancial quase infinito de material, que nunca está acabado, e que presta homenagem a um nome que “a história e cultura trans” não vai esquecer: Gisberta Salce Júnior, brutalmente espancada, violada e assassinada em 2006, na cidade do Porto.
Cinco atores e várias histórias
Gisberta é presença constante ao longo de toda a performance. É entidade omnipresente em cada movimento, em cada intervenção, um caso concreto, claro, reportado, analisado, julgado, absolvido, mas não esquecido. É evocada a espaços, por entre muitas outras referências.
Em cena, um grande artefacto de chapas metalizadas, da autoria do artista Tales Frey, envolve o espectador, propicia o reflexo de uma plateia uniforme e convida à desconstrução de uma falsa “normalidade”.
“Nesta peça chamo os espectadores a conhecer as pessoas que vieram antes de nós, pessoas que foram trans-pioneiras, que fizeram um movimento para que, hoje, eu e tu pudéssemos estar aqui a conversar”, sentados, em plena sala, assume Hilda de Paulo.
Em cena, cinco atores “que não interpretam personagens trans, mas são apenas veículos desses nomes”, relatam casos concretos de dificuldades, de tribulações, de injustiças. De Ruth Bryden a Renata Carvalho, de Patrícia Ribeiro a Filipa Gonçalves, de Roberta Close a Lara Crespo, todas elas ganham uma voz.
Tiago Aires Lêdo é um desses atores, que empresta o corpo e a alma a uma mensagem que urge tornar normal, presente.
É um dos atuais membros da direção do TUP e assume que a “liberdade” continua a ser a marca dominante de uma das companhias mais antigas da cidade. “Sabemos que temos um legado histórico, mas o TUP dá total liberdade aos artistas que convidamos para explorar as obras que quiserem”, revela. “Neste momento, esta peça faz sentido no que a companhia é”.
Tiago é um dos que se move por entre o emaranhado metálico de um mundo em (des)construção. Ele e mais quatro, todos relatam perguntas embaraçosas, situações constrangedoras, histórias incómodas que, ainda hoje, nos fazem questionar sobre a dignidade humana e o quão desconhecemos e toleramos a diferença.
“Talvez por sentirmos que esta é uma questão que ainda não está resolvida, sentimos esta responsabilidade de ser agentes de mudança e provocar nos outros que o sejam”, assume o ator, que faz a sua estreia em palco com este espetáculo.
“É o meu primeiro espetáculo, sim. Estou ansioso, confesso, mas espero que seja um bom momento para todos, espectadores e espectadoras”, diz.
Mensagem para criar desconforto
Para Hilda, o importante não é agradar a todos. “Claro que espero que as pessoas gostem, mas espero, acima de tudo, que saiam pensando, como se alguma coisa tivesse acontecido ali”.
Durante quase duas horas procura-se a resposta (será?) à pergunta que faz a súmula de tudo: “o que vem depois da esperança?”
“Esta é a frase do livro ‘Arte Queer do Fracasso’, de Jack Halberstam, e o que ele vai responder é que depois da esperança vem sempre o fracasso. O que proponho aqui é uma tentativa de analisar o que seria esse fracasso”, destaca Hilda.
“Até porque as pessoas transgéneras são vistas pela maioria como fracassadas, mas eu vejo o contrário. Foi a pessoa cisgénero que fracassou. Porque eu estou bem. E elas não estão bem”, resume, a sorrir.
"Até acho ótimo que algumas pessoas saiam odiando o espetáculo, até porque o desconforto gera ensinamento. Se passar alguma mensagem, se causar algum interesse, se a dúvida se instalar, então o trabalho está cumprido”, revela a encenadora, abrindo a possibilidade de tornar este trabalho uma “trilogia”, por ser uma temática “sempre inacabada”.
Em palco as histórias sucedem-se, umas atrás das outras. Por entre mensagens fortes, há figurinos coloridos que nos remetem para “influencers, youtubers, instagrammers, cantoras e cantores, para a performatividade dos anos 80 e 90 e os bailes de vogue norte-americanos”, numa viagem pelo tempo e pelo espaço, pelas referências que nos fizeram chegar até aqui.
Não importa onde estamos, importa de onde vimos e para onde queremos ir, parecem dizer-nos olhos nos olhos, no silêncio que ocupa grande parte das respostas que um eco teima em reverberar.
No final, há uma ideia que fica: “Não é ser trans que me define”, atira uma das personagens. E é isso que faz Gisberta viver ainda hoje, uma referência da luta para além do género.
Texto: José Reis
Fotos: Guilherme Oliveira e João Coelho