18/05/2023

Em 30 anos de atividade, a Runporto organizou já 800 eventos na cidade. A poucos dias de ir para a estrada a 17.ª edição da Corrida da Mulher, falamos com o pai das corridas no Porto, Jorge Teixeira. O que faz “correr” este tripeiro, natural de Cedofeita, que está na linha da frente dos destinos da Runporto? Trabalhar para a comunidade, para o Porto, com o sentimento que ainda hoje, e sempre, o faz mover: organizar corridas vencedoras na cidade.

 

- Podemos dizer que a Runporto começou a dar os primeiros passos a 31 de dezembro de 1994. Estávamos num dia chuvoso de Passagem de Ano. Este começo também coincide com o início de uma parceria de quase 30 anos com o Município do Porto. Foi mesmo um caso de “casamento molhado, casamento abençoado”

 

- Essa frase foi-me dita no dia seguinte à Corrida de São Silvestre pelo então vereador do desporto, o Eng.º Armando Pimentel. Mas deixe-me recuar um pouco mais no tempo. Fui corredor e maratonista durante muitos anos. Tinha uma equipa de atletismo no Porto, a TERBEL. Vi, na altura, a São Silvestre como um evento do clube. No país só existiam duas corridas de São Silvestre – a da Amadora, que ainda se mantém, e a dos Olivais. E então nasceu a norte a São Silvestre do Porto.  Recordo-me que enviei uma carta ao vereador que acabou por me receber e fui muito direto na conversa que tivemos. “Não venho aqui pedir dinheiro”, disse. Até porque já tinha dois patrocinadores que completavam o orçamento da corrida. Precisava apenas de autorização, licenciamento, montagem de uma pequena tribuna e empréstimo de umas grades. A Câmara do Porto acabou por acreditar em mim. E lá organizei a São Silvestre num dia de intempérie inacreditável.

 

 

- Mas chegou a equacionar cancelar essa primeira corrida?

 

- Às 17h00 lembro-me de ter recebido um telefonema da ANOP [Agência Noticiosa Portuguesa, hoje Agência LUSA] a questionar-me se a corrida se iria realizar ou não. Estava no meu carro a fazer horas para iniciar as montagens e à espera que a chuva parasse. Estava com os meus filhos [Tiago, na atura com 9 anos, e Ricardo Teixeira, com 15 anos]. Acabei a montar a corrida debaixo de chuva intensa e com poucas pessoas - naquela altura não tínhamos a estrutura e o pessoal que temos hoje! Não havia pórticos insufláveis, não havia nada. Tínhamos um pano enorme com a inscrição “Meta”, pintado nas oficinas da Câmara Municipal, amarrada a dois postes de iluminação. O temporal era tanto que acabou por rasgar o pano. Mesmo assim, e apesar de todas as adversidades, a corrida acabou mesmo por se realizar. Nunca mais parei.

 

- Há quem diga que o Jorge Teixeira tem um “contrato” com o São Pedro, porque aquando das grandes corridas de estrada, a meteorologia parece sempre ajudar…

 

- [risos] Sim, há quem diga isso e, de facto, há essa coincidência. Mas, em tantos eventos que organizo, estou sempre sujeito às intempéries. Temos conseguido! Mas o meu pessoal sofre muito de noite com os ventos, a chuva. Já tivemos duas maratonas muito difíceis, uma delas com a chegada no Parque da Cidade e outra com chegada no Queimódromo.

 

- Algo mudou quando lhe-é apresentado, em Arca D’Água, o Abílio Cunha, da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral. Quer falar-nos deste momento e do seu significado?

 

- A Runporto nasce fruto de uma reunião que tive com o Abílio Cunha. Precisava de ajuda na comunicação, encontrei-me com ele, uma pessoa admirável que, com as suas limitações, deu-me a ideia de lançar um site, runporto.com. Fiquei a pensar: “este homem está carregado de ideias, mas quem vai fazer isso?”, questionei. “Eu!” – respondeu o Abílio Cunha. E assim foi o início de uma grande amizade que perdura até aos dias de hoje e o começo da Runporto.

 

 

O Homem do Porto e dos três “Pês”

 

- É conhecido no meio por ter alguns epítetos curiosos: o homem dos nervos de aço e o homem dos três “Pês” – planeia antes, planeia durante e planeia depois. Quer explicar-nos de onde isto vem?

 

- Sempre fui assim, desde miúdo. Quando tinha seis anos já sabia fazer contas e ler. E até já tinha curiosidade em ler os jornais! Isso deu-me logo uma capacidade diferente na organização das minhas tarefas escolares. Quando fui para a primeira classe, a professora chamou os meus pais e disse-lhes: “este miúdo não está aqui a fazer nada, vamos passá-lo diretamente para a segunda classe”. Na altura isto era permitido e assim foi. Sempre fui superorganizado, nasci com esse dom. Nas corridas que organizamos, temos de planear muito, antes e depois de cada evento. Quando acaba uma corrida já estou a pensar na seguinte. Durante e no final de uma corrida aponto tudo o que está mal ou pode ter melhorias – e atualmente os erros são cada vez menos. Nas reuniões de preparação gosto de picar e confirmar todos os pontos, o que está e o que não está pronto. A minha equipa sabe que se precisarem de mim, eu estou cá.

 

- Tem os dois filhos na direção da Runporto. Foi fácil convencê-los a trabalhar consigo e a delegar-lhes parte das responsabilidades?

 

- Sempre foi muito fácil delegar. Eu acredito e delego nas pessoas. Já não tenho necessidade de estar lá, ensinei-os. À medida que vou envelhecendo, vou delegando. Acredito muito na juventude. Têm uma visão própria, mas também parece que conseguem sentir e visualizar o que eu quero.

 

 

 

- E acha que é também uma forma de trabalhar para não o desiludir?

 

- [pausa] Sim, de certa forma.

 

- Que qualidades e atributos reconhece na sua equipa?

 

- A honestidade, a lealdade e a pontualidade são cruciais e têm de ser valorizadas.

 

“O sentimento de cortar a meta de uma Maratona não é o mesmo de uma Corrida da Mulher ou de uma São Silvestre”

 

- Com tantas corridas feitas, tantos quilómetros percorridos, deverá guardar na memória algumas histórias e ensinamentos para a vida. Quer partilhar alguns destes episódios?

 

- Na primeira corrida de São Silvestre tivemos 391 participantes, o maior prémio era um automóvel sorteado por todos os que chegavam à meta. Saiu a um senhor alemão que estava cá a passar férias, mas que embarcava no dia a seguir à realização da corrida. Fiquei com a viatura durante seis meses numa garagem e sem saber o que havia de fazer. Mas depois lá consegui entregar o carro, por intermédio de um procurador.

Tenho muitas histórias para partilhar. As maratonas duram cerca de seis horas. Fico sempre à espera do último classificado para condecorá-lo com o meu crachá de diretor do evento. Sabe, estas pessoas têm sempre histórias para contar. Ou correm em memória dos pais, ou correm em pleno processo de tratamentos oncológicos ou em recuperação de alguma doença particular. Numa Maratona do Porto, correu uma polaca ainda em visível processo de recuperação. Conseguiu acabar e isso foi um momento emocionante. Único! Ver estas pessoas a cortarem a meta, com tantas histórias pessoais de resiliência, de luta e superação, é impagável. É que o sentimento de cortar a meta de uma Maratona não é o mesmo de uma Corrida da Mulher ou de uma São Silvestre. São 42 quilómetros. Todos se superam e ainda sofre mais quem chega no final de cinco ou seis horas.

 

 

- E o que pode correr mal numa corrida de estrada e quais são os principais desafios?

 

- Os dois maiores adversários são o vento e a chuva. Muitas vezes estou na linha de partida, sempre ao telefone com cara de maldisposto. Mas não estou, acredite. Estou é a controlar à distância. Duas horas antes, a corrida tem de estar pronta. Não pode haver atrasos. Montamos tudo com muita antecedência para deixarmos tudo bem seguro e precaver qualquer tipo de acidente. Depois das corridas é outro trabalho. A regra é deixar tudo como estava antes.

 

Parceria fundamental com o Município do Porto

 

- De que forma tem sido relevante a parceria com a Câmara do Porto para a afirmação das provas desportivas de estrada na nossa cidade,com cada vez mais atletas a nível nacional e internacional?

 

- Sendo eu nascido e criado na cidade do Porto, na freguesia de Cedofeita, respiro Porto por todos os poros. Esta parceria com a Câmara Municipal é fundamental, assim como é importante que eu sinta que a autarquia se orgulha dos nossos eventos. Tudo temos feito para honrar os nossos compromissos. Adaptamo-nos às mudanças de cidades dinâmicas como o Porto é sempre um desafio. Procuramos o mais possível ser a solução e nunca o problema. Tenho muito orgulho em continuar a merecer a confiança do município. Só tenho de continuar a honrar a minha cidade. No passado fim de semana estivemos a promover, em Copenhaga, a Meia Maratona e a Maratona do Porto. Nestes eventos estamos também a promover a cidade. Até à data temos sete mil estrangeiros inscritos para as corridas em setembro e novembro deste ano. Estas pessoas não vêm sozinhas, trazem familiares e amigos que depois ficam na cidade por mais alguns dias. Portanto esta relação foi sempre saudável. Guardo com muito carinho a Medalha de Mérito Desportivo que me foi oferecida. Muita gente me pergunta porque não organizo eventos em Lisboa. Mas o Porto é a minha cidade.

 

- As corridas de estrada que organizam, mesmo os eventos de menor dimensão, vão ao encontro do que o Município do Porto defende e põe em prática: dinamizar ações e promover o exercício físico, a diversão, promover a inclusão social pelo desporto e combater estereótipos. Concorda que o desporto traz esta dimensão agregadora das várias dimensões do indivíduo?

 

- Sem sombra de dúvida. Tenho previstas 17 corridas para 2023 no Porto e 22 caminhadas do Porto Saudável, programa promovido pela Ágora, com organização da Runporto, e que visa incentivar a comunidade para a prática de exercício regular, com percursos que aliam a caminhada à cultura e à história de locais emblemáticos da cidade do Porto.

 

- A pandemia acabou também por mudar os hábitos de corrida dos portugueses. Concorda?

 

- É muito curioso porque antes da pandemia, 70% dos inscritos nas corridas tinham idades compreendidas entre os 40 e os 70/80 anos. Hoje, os mesmos 70% dos inscritos têm idades compreendidas entre os 18 e os 45 anos. O que é que isto quer dizer? O futuro das corridas está assegurado. Para bem e para mal, durante a pandemia, as pessoas constataram que só lhes era permitido sair para praticar exercício físico. Criou-se um hábito, o gosto pela caminhada, pela corrida. O pelotão inverteu-se.

 

“Tenho medo de falhar”

 

- A São Silvestre do Porto continua a ser “a menina dos seus olhos” ou não tem corridas preferidas?

 

- A São Silvestre foi a primeira, foi onde nasci e aprendi a ser organizador de eventos. Se me perguntar qual a corrida de que gosto mais, é como me perguntar de qual dos meus filhos gosto mais. São todas, nasceram de mim. Há algo que, ainda hoje me é intrínseco e não perco: tenho medo de falhar! Estou sempre nervoso, concentrado.

 

- E quando o Jorge Teixeira falha?

 

- Quando falho dou o corpo às balas. Lembro-me de ter falhado na Maratona de 2017. Correu-nos mal, a chuva intensa não ajudou e, sobretudo na parte final, não correu bem. Naquele dia cheguei a casa e tive a nítida sensação de que tinha falhado. Nas redes sociais fomos criticados. Li tudo atentamente e deixei um comentário a reconhecer que não tinha corrido bem. Pedi desculpa e prometi que tal cenário não mais voltaria a acontecer. E acabou ali.

 

 

- Como imagina a Runporto daqui a uma década?

 

- Sonhei que a Corrida São Silvestre seria a maior do país. Consegui. É a maior. Sonhei que a Corrida da Mulher seria também a maior do país. Continua a ser. Ainda não consegui bater um recorde do mundo aqui na cidade, ainda não consegui concretizar este sonho, apesar de termos tentado várias vezes. Perseguimos esse objetivo. Gostava também de ter a nossa Maratona do Porto com mais corpo, mais corredores, e atingir os 15 mil participantes. Quero que os meus filhos continuem juntos a seguir o legado da Runporto pelo menos por mais 30 anos.

 

- Quer nomear um atleta de elite masculino e feminino?

 

Tenho um ídolo vivo cuja filha também corre muitíssimo bem, chama-se José Regalo. Nas mulheres, como atleta de eleição, sem dúvida, que é a Fernanda Ribeiro.

 

- O Jorge Teixeira corre?

 

- Infelizmente por questões de saúde já não posso correr.

 

- E, num sentido figurado, o que o faz correr?

 

- Vontade de vencer e medo de perder. É preciso correr… para correr bem!

 

Entrevista: Sara Oliveira

Fotografia: Rui Meireles

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