13/03/2024

Na sua diversidade, eles são “iguais aos outros”. Na sua individualidade, e tal como os outros, eles não são “iguais a ninguém”. Pela inclusão, mas sem esquecer as mais valias de cada um, o Clube Fluvial Portuense tem hoje cinco atletas de natação adaptada que entram na água com a dedicação de deixarem lá todo o esforço possível. Anseiam provas, conquistam prémios. Ano após ano. Na semana em que o Porto acolhe o Torneio Internacional de Natação Adaptada, em Campanhã, continuamos a viagem pelos clubes que não desistem da diferença. O Fluvial é um desses exemplos, da insistência na máxima “todos diferentes, mas todos com as mesmas oportunidades”. 

 

Há uma semana que Miguel não fala de outra coisa. Todos os dias, contam-nos, olha para a porta e pergunta: “É hoje?”. Quando, na noite anterior, lhe disseram que o dia estava a chegar e que o momento seria na tarde do dia seguinte, ficou entusiasmado. Mais do que é habitual. “Até dormiu mal, tal era a ansiedade”. E, na realidade, assim que transpomos a porta que dá acesso à zona de treinos no Clube Fluvial Portuense, o treino de Miguel para. Encosta-se na beira da piscina, a ver quem somos. A sorrir, como se nos conhecesse há muito. A avaliar cada movimento. Afinal, aquilo que lhe prometeram, “que vinham cá fazer uma reportagem sobre o clube e a natação adaptada”, era real. Estava a acontecer. Iam falar com ele. Enquanto os colegas continuam o treino, Miguel não consegue deixar de prestar atenção ao que se passa ao redor. E não adianta as ordens que a treinadora lhe dá, faz um ou dois movimentos e volta ao sítio inicial, para não perder nada do que se diz.  

 

 

É assim quase todos os dias, a forma como Miguel se entrega ao treino depende muito do que o ambiente ao redor tem (ou não) para lhe oferecer. “No fundo, temos que nos adaptar a cada um dos atletas e treinar individualmente a melhor capacidade de cada um”, destaca Catarina, a treinadora. 

 

Miguel Monteiro tem 22 anos e deficiência intelectual, o que lhe afeta a fala, alguns movimentos, a expressão. Mas não lhe retira o essencial, a empatia e o amor com que acolhe todos os que se aproximam. Sorri com a cara toda. Um sorriso que cativa qualquer um e que, também por isso, o faz ser sempre desculpado pelo treino que não correu bem, pelas técnicas que falharam em determinado momento, por não ouvir o que se lança de fora para dentro da piscina. 

 

 

“Todos são diferentes e eu, enquanto treinadora, tenho de ter a capacidade de lhes falar ao coração, de lhes colocar na cabeça que só com a motivação e muito treino conseguimos chegar mais longe”, revela Catarina Araújo, de 32 anos, que tem a seu cargo cinco atletas de natação adaptada. Todos com experiências e características diferentes, mas a mesma vontade de, dentro das limitações conhecidas, procurar o seu melhor. 

 

Dar o exemplo para conseguir bons resultados 

 

O Clube Fluvial Portuense, histórico emblema da cidade a apostar nos desportos aquáticos há décadas, tem hoje cinco atletas com diferentes necessidades, trabalhados um a um, como se dessa unidade se construísse uma força maior para o clube e uma afirmação do desporto adaptado. 

 

Catarina decidiu trocar o Futebol Clube do Porto (FCP) pelo Fluvial há dois anos, pelo desafio, pelos atletas, pela força com que agarra cada investimento pessoal. “Toda a minha vida foi dedicada ao desporto adaptado, foi uma paixão que se criou durante a formação académica e olha… ainda aqui estou”, sorri. 

 

 

Dos primeiros tempos, ainda se lembra de ouvir atletas que lhe diziam que o “trabalho na piscina os dispensou da fisioterapia”, que a natação é o melhor meio para alinhar o corpo e a mente.  

 

Mas os dias são um misto de emoções: do carinho expresso num abraço, do apoio que sabe ser para estes miúdos, até ao cansaço óbvio de repetir vezes sem conta as mesmas palavras para dentro deste recinto.  

 

“Temos que ir adaptando a forma de falar com cada um deles, pois cada um entende as coisas ao seu ritmo”, assume. Só por acreditar que está a fazer a diferença é que a faz continuar. “Porque para treinarmos estas modalidades adaptadas temos que ter verdadeiramente interesse neles, em que sejam melhores atletas, ter preocupação e cuidado com cada um”. 

 

 

É neste respeito pela individualidade, nesta constante insistência em que ainda conseguem ser melhores, que Miguel nos diz que Catarina “é a pessoa de quem gosto mais”. “É a melhor treinadora do mundo”. 

 

Água como elemento que permite ser um atleta completo 

 

Numa das pistas, Pedro Prazeres vai fazendo o plano de treinos definido para este dia. Aos 24 anos, tem paralisia cerebral e move-se com uma cadeira de rodas. Precisa de todo o apoio para entrar e sair da piscina.  

 

 

“A água é onde consigo andar sem limitações, onde consigo fazer coisas que, fora dela, não me é possível”. A forma como o diz, feliz, desarma-nos. “Já treino há sete ou oito anos e este tempo tem sido bom para mim, tenho feito muitas amizades e tenho conseguido competir em algumas provas”. ‘Costas’ são a sua especialidade e, um dia, quem sabe, ainda gostava de competir a nível internacional e ganhar prémios. “Como aconteceu agora com o Diogo Ribeiro”, a nova coqueluche da natação nacional que conseguiu duas medalhas nos mundiais de natação no Qatar. Para ele, é uma referência, uma influência.  

 

“O Pedro tem conseguido alguns bons resultados, só no ano passado é que não conseguiu o apuramento para os campeonatos nacionais, mas estamos a tentar os mínimos para este ano”, acrescenta a treinadora. 

 

António Oliveira é um “velho” conhecido de Catarina. Tal como ela, veio do FCP para o Fluvial. É de Valongo, tem 20 anos e há sete anos que faz competição. Sofre de distrofia muscular de Becker, uma doença degenerativa que, sabe, o limitará com o avançar dos anos. Nada que o desmotive, há tempos a cumprir, e hoje – o presente – quer que seja o melhor da sua vida. Tem conseguido participações em campeonatos, alguns recordes e medalhas.  

 

 

Até porque não sabe já viver sem a água. “No ano passado estive meio parado, mas é mesmo algo que me faz falta”. Os treinos são partilhados agora com a faculdade, com o curso de Multimédia. Nenhum tem mais destaque que o outro. Ambos são importantes neste processo pessoal que tem um tempo limitado. “Mas a natação é para continuar, até quando me for possível, porque tenho gostado de estar aqui”, assume. E é uma terapia que o tem ajudado a tratar do seu problema – ou, pelo menos, a retardá-lo. 

 

 

Catarina treina cada um deles como se a maior prova estivesse a chegar. No final do dia, sente a satisfação do objetivo “cumprido”. “É uma rotina boa, penso no que lhes tenho que dizer no dia seguinte, pensar nas coisas para fazer e melhorar ainda mais a performance de cada um”. 

 

Porque, quando tira o equipamento de treino e se dirige para casa, lembra o sorriso de todos eles, o quanto faz a diferença no dia a dia de cada um. Perante isto, é difícil não acreditar que amanhã será um dia ainda mais feliz do que hoje. 

 

Texto: José Reis

Fotos: Andreia Merca

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