Nas ruas do Porto, está a nascer “Travessias Malungas”, uma curta-metragem que conecta as histórias de resistência à escravatura no Brasil com as experiências contemporâneas de mulheres negras migrantes em Portugal. O vídeo-ensaio de Letícia Simões é um dos projetos apoiados pela Bolsa Neves da Filmaporto.
Com o corpo, o gesto e a memória como ferramentas de criação e insurgência, o filme parte das estratégias de resistência de três mulheres negras ao tráfico esclavagista no Brasil: Maria Felipa, na Bahia, que comandou um grupo de mulheres contra invasores portugueses, articulando táticas que combinavam astúcia e força coletiva.
Maria Benguela, em Sergipe, que liderou um quilombo e construiu uma comunidade autónoma, com estruturas políticas, económicas e espirituais.
Já Maria Rufina permanece menos conhecida, mas a perseguição de que foi alvo, no final do século XIX, revela como o regime escravocrata continuou a operar nas entranhas das instituições, mesmo depois da sua abolição formal.
Para Letícia Simões, o mais impactante foi perceber como essas mulheres, mesmo diante de sistemas brutais, agiram coletivamente para proteger as suas comunidades e manter vivas suas culturas.
"Resistir não é apenas enfrentar, mas também criar espaços de vida, cuidado e espiritualidade", afirma a artista, destacando que práticas partilhadas como cozinhar, cantar ou a troca de saberes são formas poderosas de insurgência.
No filme, a travessia é literal e simbólica — das margens do Atlântico Sul até ao Porto, onde estas histórias se entrelaçam com os testemunhos, recolhidos no Porto, de mulheres negras migrantes.
Essas narrativas ganham vida na obra através das performances de Tony Omolu e Wura Moraes. "No fim, cada gesto, cada silêncio, cada deslocamento foi uma tentativa de me aproximar dos caminhos que elas trilharam, mesmo sem ter seus corpos nem suas histórias completas à disposição", reflete Letícia.
"O corpo virou arquivo, virou embarcação, virou encruzilhada. Descobri que há uma memória que não está nos livros, mas nos músculos, nos pés que pisam a terra, na respiração que se altera diante de certos nomes. Foi uma experiência de reconexão com uma linhagem ancestral que não é apenas biológica, mas também política, simbólica e afetiva.", conclui a cineasta.
Filmar no Porto foi, para a artista, “uma escolha e também um gesto de enfrentamento”. Simões explica que o Porto foi um dos principais centros de financiamento e saída de navios negreiros.
Contudo, é hoje uma cidade onde vivem muitas mulheres negras migrantes, impactadas por outras formas de colonialidade.
Ao filmar na cidade, a realizadora quis tensionar essa permanência histórica: “O corpo negro, que antes era capturado e levado, hoje caminha pelas ruas, trabalha, sonha, sobrevive. A cidade do Porto aparece no filme como cenário e personagem — ora cúmplice, ora resistente — de uma história que ainda se escreve.”
Fotos: Renato Cruz Santos