28/12/2023

A partir de uma cor pré-definida – o violeta -, o mundo ganhou mais formas nas paredes do Mural da Restauração. Através de uma convocatória lançada pela Ágora para traçar uma nova composição no espaço localizado a meio caminho entre a parte alta da cidade e a marginal junto ao Douro, sete artistas urbanos abraçaram o desafio com os dois braços (e mais alguns, que o espaço era grande). O resultado é, hoje, uma montra colorida de várias visões que já pode ser apreciada.

 

 

A surpresa de Mura é agora real

 

Quando Mura chegou ao local que lhe foi destinado, mesmo na zona mais ao fundo deste local, teve a maior surpresa de todas: a flor que ela tinha pensado pintar, em grandes dimensões, estava ali, no meio de outras plantas, com um violeta vibrante a brilhar sob um sol de inverno. “É uma espécie invasora, que ocupa espaços abandonados e cresce de forma livre”. Tudo isso a interessou, ser livre, nascer onde não se espera, viver onde aparentemente não há vida. Mais ainda quando percebeu que iria ter ali, ao lado, uma representação real da flor. “A partir da cor pré-definida, pensei logo em pintar várias ‘glórias da manhã’”. Na parede nasceram três, de diferentes prismas, com cores mais ou menos carregadas, como se fossemos convidados a entrar numa floresta de flores. Aliás, tem sido este o elemento principal do trabalho de Mura, que se interessa pela botânica e que, ainda recentemente, apresentou uma nova espécie na Baluarte, no Quartel de Monte Pedral.

 

 

A força de um novelo metálico

 

Um emaranhado metálico, sem início nem fim, marca um dos polos desta grande parede. É uma referência industrial, ao poder do ferro, “um material que funciona entre sombras e luzes”. O trabalho tem a assinatura do artista ЗЭТВИНС. Pronunciar o nome pode ser difícil, chamemos-lhe pelo nome próprio: Yuri. É russo, vive em Portugal há pouco tempo e ainda não consegue pronunciar nenhuma palavra em português. Explica-nos que este trabalho que agora apresenta vem na sequência de dois anteriores, feitos em Amesterdão, a capital dos Países Baixos. “É a primeira vez que pinto um trabalho numa superfície desta dimensão”, revela, a sorrir. As cores mais pastel propostas na convocatória que contrastam com as sombras que um sol de meio de tarde deixa cair nesta estrutura metálica. Ao perto, sentimo-nos dentro deste verdadeiro novelo metálico. Há algo de tridimensional aqui. “É isso que espero, que as pessoas se sintam abraçadas por esta proposta”.

 

 

Num mundo cor-de-rosa, Theritch alerta-nos para o poder da cultura

 

Os caracteres fictícios que o artista Theritch inventou para esta intervenção não são, afinal, total ficção. Como uma barreira que delimita a intervenção, há uma palavra repetida e um significado universal: CULTURA. A nossa, a dos outros, a dos que vivem a nossa realidade, a dos que, no meio de um universo menos pacificado, fazem dela uma porta de saída – ou um meio de entrada. Neste caso, The Ritch seleciona a cultura japonesa como referência, “como algo que me interessa, que abordo e que exploro neste meu alter-ego”. É designer gráfico, mas, aqui, é a personagem que explora uma (não) realidade feita de ambiguidades, em grande escala. “À partida, quem aqui passa pensa que isto é um lutador de sumo. Mas não é. Está a usar umas cuecas, não há nada que lhe desvende o sexo, até porque não lhe vemos a cara, o cabelo, os olhos”. É como o artista, que não vê necessidade de desvendar a sua real identidade. O importante é o que essa cultura nos faz sentir, não o que ela nos quer fazer acreditar. Já vimos isto antes, mas se calhar não é bem aquilo que achamos que pode ser.

 

 

Ra.so.al e Telma Pinto contam histórias por entre dois mundos

 

No processo criativo de Rafael Alves (ou Ra.so.al) e Telma Pinto, o ponto inicial foi simples: depois de terem sido selecionados pela convocatória lançada pela Ágora, colocaram os “seus dois mundos” em cima de uma mesa para que, sob uma possibilidade de ações, pudessem decidir o que fazer. “Tínhamos um banco de referências e colocamos tudo em confronto”, assume Telma. “Como o tema era livre, meio que lemos o pensamento um do outro e pensamos automaticamente em flores”, acrescenta Rafael. O resultado é um conjunto de narrativas, que existem para além da abstração da proposta, e que podem ser (re)construídas por quem passa, com novas personagens, como uma narrativa que está sempre em aberto. É um espelho do trabalho dos dois, que contaram com a ajuda de outro “amigo, o João Duarte”, que colaborou nesta parceria. “Porque achamos que a linguagem dele também fazia sentido aqui”, admitem.  

 

 

Da Madeira à Venezuela, Teresa pinta malas que trazem mundo ao Porto

 

As malas de Teresa têm vida dentro. Aliás, as malas de Teresa têm janelas e rodas, são puxadas por seres iguais a qualquer um de nós e, dentro, levam pessoas iguais a qualquer um de nós. O mural que Teresa Vieira pintou retrata a história de muitos – e a sua também. “Eu sou venezuelana, os meus pais viviam na Madeira e emigraram para a Venezuela era eu muito pequena”. Hoje vive em Aveiro, a irmã no Porto, os pais continuam lá longe, o sotaque doce e arrastado revela que a Venezuela continua a viver dentro das duas. “Este é um trabalho sobre a emigração, a partir de uma história pessoal”, admite.

 

De um êxodo que não para, da urgência de alertar para os perigos de uma emigração em larga escala, onde uns têm sorte e outros lutam pela vida. “Eu sou uma dessas afortunadas, cheguei aqui de avião, a um país que vive em paz”. Os caminhos que traça na parede da Restauração nasceram de forma célere, “muito naturalmente”, por ser algo que não lhe sai da memória. Deixou o trabalho sem título, para que todos possam interpretar como quiserem. “Houve um senhor que passou aqui e falou-me da crise na habitação em Portugal”. Sorri. É talvez um novo modo de emigração, pensa.

 

 

Joana construiu a maior sopa de letras para homenagear a avó

 

Joana cresceu em Viseu, a ver a avó fazer sopas de letras. Daquelas que se fazem de uma penada, daquelas que demoram mais tempo a terminar, daquelas feitas na horizontal, na vertical e as mais difíceis, as que têm palavras na diagonal, “que podem ser lidas de cima para baixo e de baixo para cima”. Daquelas que saem nas revistas, nos jornais, que se compram em livros. Foi a partir dessa memória que criou, na Restauração, uma grande sopa de letras, inspirada na avó que, ainda hoje, aos 92 anos, ocupa a cabeça a ultrapassar estes desafios. “É como se, com isto, o meu projeto ‘Hoje’ brincasse com a intemporalidade, com o efémero”, admite Joana Hoje.

 

Neste quadro de 420 carateres convocou palavras que aprendeu no Porto, onde agora vive, como “molete, aloquete, bida”, ri a artista. Assim mesmo, com “b”. Foi o primeiro mural, um novo desafio que a fez sair do trabalho em papel e colocar o seu projeto ao alcance de todos. “Para além disso, acrescentei um QR Code que nos leva a uma sopa de letras virtual”. No fundo para que não estraguem a que está pintada, a tempo de a avó poder ver a dedicatória que lhe fez. Ainda não viu. Mas Joana acredita que a conseguirá trazer à cidade para esta homenagem.

 

Nota: o novo Mural da Restauração conta ainda com uma intervenção do artista Tomás Facio que, por estar ausente do país, não pôde participar na reportagem. Fica, no entanto, a imagem da proposta apresentada neste local.

 

 

Texto: José Reis

Fotos: Rui Meireles e Andreia Merca

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