A emoção de estar numa pista de atletismo mantém-se viva, mesmo passados 12 anos desde o final da carreira. De fato de treino escuro, cabelo esticado, rosto maquilhado e acompanhada da medalha de ouro que conquistou nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, encontramo-nos com Fernanda Ribeiro na pista do Estádio Municipal da Maia (onde já riu e chorou) e partimos numa viagem pelas memórias de uma vida dedicada ao atletismo.
Fernanda Ribeiro é a madrinha da 20ª EDP Maratona do Porto, prova que serve de pretexto para conhecer aquela que muitos dizem ser a melhor atleta de todos os tempos.
Natural de Penafiel, não precisa dos dedos das duas mãos para contar que idade tinha quando começou no atletismo. É a segunda mais nova de sete irmãos e no mundo das corridas chegou a ser conhecida como a “menina das novelas”. Teve sempre o apoio da família e dos amigos, que por mais de uma vez conseguiram demovê-la da ideia de desistir perante alguma injustiça e dificuldades físicas. As lesões marcaram o percurso de Fernanda Ribeiro e o tendão de Aquiles foi sempre um ponto fraco. Ainda é.
No currículo, soma 12 medalhas em competições internacionais: cinco de ouro, quatro de prata, três de bronze. Revela que nem sempre foi tão disciplinada nos treinos como devia e defende que só faz sentido correr se se sentir prazer.
Já tinha mais de 30 anos quando correu a primeira maratona. Em 2009, completou a Maratona do Porto em 2h31m11s. Foi a melhor portuguesa na prova, ao alcançar o 4.º lugar, e garantiu o acesso aos Europeus de Barcelona.
No dia 3 de novembro, Fernanda Ribeiro estará na partida da 20ª EDP Maratona do Porto, na via do Castelo do Queijo, junto ao Sea Life.
Tem 55 anos, deixou a competição aos 43. Ainda corre?
Ainda corro, mas pelo prazer de treinar, porque acho que me faz falta. Comecei no atletismo quando tinha nove anos e sinto falta da corrida. Já não corro por obrigação, não tenho o objetivo de fazer muitos quilómetros. De segunda a sexta-feira, ao final da tarde, junto-me sempre a um grupo de veteranos. Faz-me bem.
Uma vida dedicada ao atletismo e ao desporto, um percurso marcado sobretudo pelas provas de 5000 e 10000 metros. Que momentos destaca deste percurso?
Comecei a correr com nove anos, aos 13 fui ao meu primeiro Campeonato da Europa de Juniores, onde fui campeã. Mais tarde, fui medalha de prata no Campeonato do Mundo de Juniores. Mas, na passagem de júnior para sénior, vivi uma fase difícil, porque estava habituada a ganhar todas as competições em que participava e as pessoas questionavam o porquê de não estar a conseguir resultados imediatos com esta mudança. Atualmente, existe o escalão sub 23, mas no meu tempo não existia. Eu passei de júnior para sénior e como não consegui logo os resultados que esperavam, ou seja, medalhas, foi muito complicado.
A passagem de júnior para sénior foi uma das fases mais difíceis da sua carreira?
Ouvi dizerem, muitas vezes, que eu já tinha morrido para o atletismo, que tinha exagerado no esforço quando criança ou que tinha sido dopada… coisas que magoam. Eu fiquei muito desanimada e desmotivada em relação à minha carreira.
A Fernanda Ribeiro representou Portugal em cinco Jogos Olímpicos, mas no ano da estreia olímpica ainda era júnior?
Os meus primeiros Jogos Olímpicos foram em 1988, em Seul, e com exceção da medalha olímpica em Atlanta, foram os jogos que mais me marcaram, os que mais gostei. Corri os três mil metros. Não sabia o que era estar na aldeia olímpica, o que era participar nuns Jogos Olímpicos, nunca irei esquecer aquele ambiente.
Quatro depois participa nos Jogos Olímpicos de Barcelona.
Foi em 1992 e eu não era candidata a nenhuma medalha. Tinha tido vários problemas no tendão de Aquiles e sabia que não era candidata ao pódio. Portugal não conseguiu medalhas nas Olimpíadas de Barcelona e o presidente da Federação Portuguesa de Atletismo fez umas declarações que me visaram, de forma negativa, e isso mexeu muito comigo. Pensei abandonar a carreira, porque damos sempre o nosso melhor e não há ninguém que fique mais triste com um resultado do que o atleta que treinou durante anos. Estava decidida a parar o atletismo, mas depois com o apoio do treinador e da família ponderei e decidi que ia mostrar quem eu era e que estava bem viva.
O que mudou?
Nesta fase decido começar a competir nas provas dos 10 mil metros. Em 1933, participei no Campeonato do Mundo e fiquei em 9º lugar, o que para mim foi uma vitória. Em 1994 ganhei a medalha de ouro no Campeonato Europeu, em Helsínquia; em 1995 participei no Campeonato do Mundo, em Gotemburgo, e ganhei a medalha de ouro nos 10 000 metros e a de prata nos 5 000 metros. Em 1996 fui campeã olímpica, em Atlanta. Em 1997 ganhei mais duas medalhas, no Campeonato do Mundo, em Atenas. Em 1998 conquistei a medalha de prata nos campeonatos europeus, em Budapeste. Neste ano, eu tinha estado doente, com uma anemia muito grande. No ano 2000 ganhei a medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Sydney. A minha carreira foi muito recheada.
Uma carreira de muita luta?
Muita luta, muita luta… Recordo que, por exemplo, em 1999 participei no Campeonato do Mundo de Sevilha, onde era candidata ao título. Mas, sem qualquer explicação, em plena prova, senti que não conseguia correr mais e desisti. Treinei para aquele objetivo e não correu bem. Digo muitas vezes que a minha melhor fase foi ganhar a medalha de ouro em 1996 e a pior fase foi em 1999. A prova de Sevilha marcou-me tanto que eu estive uma semana em casa, sem sair…
É o momento em que pensa: eu já não quero correr?
Pensei isso, sim, estava decidida, deitei os sapatos de bico fora.. Mas tenho um grupo com quem treino em Paredes e os meus colegas disseram que se eu não queria competir, tudo bem, mas não ia deixar de treinar. E assim regressei lentamente às corridas.
No ano 2000 participa nos Jogos Olímpicos de Sidney e conquista a medalha de bronze. Depois da fase difícil que passou como viveu este desafio?
O ano 2000 foi um ano muito complicado para mim. Sentia-me insegura, comecei a ter medo de competir no estrangeiro. O meu treinador chegou a um ponto em que disse: “vamos fazer uma conferência de imprensa para anunciar que vais falhar as olimpíadas de Sydney”. Mas ao mesmo tempo disse-me que o medo que eu sentia pelas adversárias era o mesmo que sentiam por mim e que ao desistir ia desperdiçar uma medalha olímpica. Fiquei com aquela ideia na cabeça. Entretanto, fui para a aldeia olímpica, aquele ambiente é fantástico e comecei a ganhar mais confiança em mim. No dia da prova perguntei às colegas portuguesas se devia levar comigo o fato de treino de cerimónia e elas disseram “não leves, se ganhares uma medalha vamos buscar”. Entrei na competição e acho que cheguei a um momento em que pensei: o terceiro lugar já chega, podia ter conseguido mais, sei que não dei tudo o que podia em Sydney. Mas, por tudo o que passei, para mim a medalha de bronze soube-me a ouro.
Em 2012 decidi terminar a carreira. Porquê?
Tive de parar devido a uma lesão. Ainda fiz a Meia-maratona do Porto, corri com uma rutura num dedo, que só foi detetada mais tarde. A minha última prova foi em Cabo Verde, tive muitas dores e quando regressei a Portugal descobriram uma lesão no pé. Disseram-me que nunca mais voltaria a correr, nem por prazer, mas após um ano de tratamentos consegui regressar. Com limitações, mas consegui, e por isso tive de terminar a minha carreira, senão acho que ainda cá andava. O bicho e o espírito da competição estão sempre comigo, quem foi atleta de alta competição vai ter sempre este sentimento presente.
A Maratona faz parte da carreira da Fernanda Ribeiro, mas numa fase mais tardia?
Já tinha mais de 30 anos quando corri a primeira maratona. Consegui 2h29m na Maratona de Hamburgo, em 2006, e 02h31 na Maratona do Porto, em 2009. A Maratona sempre foi uma prova muito complicada para mim por causa das lesões que sofri.
Conselhos para quem vai correr uma maratona?
O que digo sempre é para fazerem as coisas pelo prazer, treinem, mas tenham cuidado. Muitas vezes exageram nas distâncias que percorrem durante os treinos. Eu tinha treinos bidiários., mas descansava, tinha massagista. Há pessoas que na preparação para os 42 quilómetros percorrem de uma única vez distâncias muito grandes. Muitas vezes treinam em excesso e passado algum tempo sofrem as consequências, devem ter sempre alguém a orientar os treinos. O descanso também é muito importante. Quando alguém participa numa prova como esta deve ir pelo prazer. A corrida pelo prazer de fazer, pela conquista.
Quando vê os atletas na maratona emociona-se?
Claro que sim, eu cá fora sinto mais do que lá dentro, sofro mais. Custa-me muito ver pessoas quase a arrastarem-se ou quase a chegarem à meta e a pararem… porque estavam no limite, isso dói. Eu sei o que isso significa, o sofrimento que é. Quando dou o tiro de partida nas provas sinto-me nervosa, sei o que é estar na meta, vivo muito o que eu era como atleta.
Atualmente qual o papel da corrida na sua vida?
Tenho a Academia Fernanda Ribeiro, no Estádio Vieira de Carvalho, na Maia, onde treinei durante parte da minha vida. Acompanho mais de 100 atletas (crianças e adultos). Vou às escolas, participo em algumas provas, continuo com uma ligação muito próxima ao atletismo e ao desporto. Este é o meu local de trabalho, é onde treino, é a pista onde ri e chorei, é um marco importante para mim.
Entrevista: Rute Fonseca
Fotos: Rui Meireles e DR