Se um atleta decide dedicar-se a uma modalidade que, previsivelmente, é praticada apenas por mulheres, ele passa a ser o quê? E se uma mulher quiser enveredar por uma carreira de desportos ligados à força, velocidade e adrenalina, porque não o pode fazer de forma natural? Numa série de reportagens sobre o género no desporto - e se esse ainda é um tema que mereça discussão e divisão -, conhecemos Fábio Almeida, atleta de natação artística que faz parte da equipa do Clube Fluvial Portuense.
A história de Fábio Almeida começa do outro lado do oceano: nasceu brasileiro, “filho da água”, como diz, em São Salvador da Bahia. Das primeiras memórias que guarda, a água sempre fez parte : os tempos em que viveu a liberdade de sentir o marejar quente nas pernas franzinas, os primeiros raios de sol a entrar pelo azul do horizonte, a sensação de ir mais fundo. É como se tornasse a água como pai e mãe, o parente mais importante nesta relação familiar .
A família (de sangue) que cedo entendeu que o pequeno rapaz não podia viver sem a água. Levou-o para aulas acompanhadas, onde lhe ensinaram os movimentos para explorar e chegar ainda mais longe. Para partir à descoberta, ir com tudo, cabeça, tronco e membros. A natação surgiu naturalmente e a água, essa, ficou para a vida. Com movimentos mais ou menos concretos, com aventuras mais ou menos ambiciosas, talvez tenha descoberto tudo cedo demais.
E foi talvez por isso que, aos 17 anos, mudou da água para o solo. Abandonou as piscinas para se dedicar aos tapetes de jiu-jitsu e aí descobriu uma nova vocação. Não pensou na água mais como meio para competir, para ganhar medalhas, para se afirmar como atleta. Os desportos de contacto acabaram por engolir os sonhos de um menino-homem que chegou a faixa preta da modalidade, em 2014.
Mas, qual filho pródigo que regressa a casa depois de uma jornada farta, acabou por voltar ao sítio onde tudo começou: à água. Passou a juntar novamente a natação ao jiu-jitsu e ao MMA (Artes Marciais Mistas, em português) que, entretanto, começou a praticar, e ainda lhe acrescentou uma nova modalidade: a vertente artística.
O regresso à piscina
Fábio tem hoje 37 anos, chegou a Portugal a tempo de a pandemia fechar tudo. “Tinha parentes cá, tios e tias, e acabei por estabilizar”. Aprendeu a ver o melhor do país que o acolheu. Já lá vão quatro anos.
É hoje campeão de jiu-jitsu em várias competições, praticante de MMA, professor e atleta de natação artística. “A minha tia era professora de hidroginástica e natação e desafiou-me a fazer o curso de treinador de natação”. Chega assim ao Clube Fluvial Portuense. Sem grandes objetivos, apenas tirar esse curso e esperar pelos desafios que o desporto iria trazer.
“Neste curso conheci as várias modalidades ligadas à água. Para além da natação pura, o polo aquático e a natação artística. Foi aqui que aprendi as coisas novas que a natação pura, mais técnica, não permite”.
Fábio é franzino, tem uma estatura média, pele bronzeada, tatuagens espalhadas pelo corpo “com significados muito pessoais” e uma estrutura óssea forte que lhe permite realizar vários movimentos aquáticos.
Aos poucos, foi olhando para esta possibilidade como uma realidade. Da curiosidade, onde via coreografias dentro de água, até fazer parte delas. Desde 2022, e muito incentivado pela treinadora Sílvia Pinto, que encara, de forma destemida, os desafios que a água aparentemente calma, sossegada, lhe apresenta.
Hoje, o Clube Fluvial Portuense tem natação artística em vários escalões, mas frequentados, quase todos, por elementos do sexo feminino. São apenas quatro os homens que não temem os preconceitos. Fábio diz não entender as conversas que ainda existem à volta da modalidade, mas sabe que as coisas estão a mudar. Terão de mudar.
“O tabu tem de ser quebrado. Acho que quem diz que este desporto não é para homens deve ter algum problema”, sorri, de forma aberta.
Entre duetos e trabalhos de grupo
O atleta faz já parte da classe de Masters (conhecida como a turma dos mais velhos). Ao final da tarde, encontra-se com os mais novos para uma coreografia partilhada por vários braços, a várias pernas. Primeiro entram as meninas, depois os rapazes. Nadam de uma ponta a outra, em aquecimento. Improvisam uma coreografia de grupo, já que a sua especialidade é duetos. “E solos, gosto muito de fazer solos”. Porque lhe permite fazer mais. Ser mais ele. Poder escolher o que quer realmente executar.
Os gritos das aulas ao lado confundem-se com as ordens que a treinadora atira para dentro de água. Ora é a postura que não está no ângulo, ora o braço que fez uma rotação maior do que o devido. Treina três dias por semana. Aumenta a intensidade quando chega o tempo de competir. Do rol de provas, “já participei em competições em Torres Novas, Felgueiras, Lisboa”. E ganhou troféus com todos os duetos que realizou.
Hoje não vira a cara ao que descobriu. Tenta orientar a agenda para que nada falhe. Continua a competir em desportos de contacto, a ganhar prémios, a frequentar as aulas de natação e a treinar as novas coreografias que o levarão ainda a mais provas. Tudo isto num calendário devidamente organizado e respeitado. Com disciplina e rigor.
“O ideal é experimentar, sentir e viver. Não ligar para o que os outros dizem, tentar esquecer o preconceito e sentir o que só quem faz sente”, ouvimos-lhe, ao despedir, enquanto mergulha para novo treino.
O “filho da água”, que nasceu do outro lado do Atlântico, sabe que só assim se percebe a verdadeira dimensão desta disciplina desportiva.
Texto: José Reis
Fotos: Nuno Miguel Coelho