A relação de Carla Oliveira com o boccia foi tardia, mas profundamente transformadora. Um ano depois de ter parado para assumir a maternidade, encontrou na modalidade um lugar de superação… e não o fez por menos.
O título de campeã da Europa de boccia, na classe BC4, alcançado em agosto nos Jogos Paralímpicos de Roterdão, já ninguém o tira. E os Paralímpicos Paris 2024 ainda são uma possibilidade. Carla Oliveira é uma das desportistas de elite abrangidas pelo programa municipal de Patrocínio a Atletas de Alto Rendimento e de Elevado Potencial Desportivo. Com 34 anos, o percurso da atleta portista continua auspicioso, na direta proporção dos seus sonhos e metas.
Conta-nos um pouco do teu percurso pessoal desde o momento em que a Carla, menina endiabrada e muita ativa, foi confrontada com o diagnóstico de distrofia muscular nas cinturas?
Antes de mais tenho de dizer isto: ainda que esteja numa cadeira de rodas, não é esta cadeira que me define enquanto pessoa. Claro que me moldou enquanto mulher, moldou os meus valores, a minha forma de pensar e agir no quotidiano. Mas não é isto que me define. Sou muito mais do que uma pessoa em cadeira de rodas!
Mas essa aceitação não surgiu logo, adveio de um processo que não terá sido fácil gerir...
Foi uma fase de adaptação muito impactante não só para mim, mas também para os meus pais. Quando os médicos dão um diagnóstico destes a uma criança de 10 anos de idade é destruir completamente os seus sonhos e dos pais. Mas o curioso é que, na realidade, isso não aconteceu! Teve de existir antes uma adaptação desses sonhos. Mas reconheço que foi um processo bastante difícil em que se passa por várias fases de revolta e de luto, mas depois esse processo tem forçosamente de levar a uma aceitação. A dada altura, em plena adolescência tinha uma decisão muito importante a tomar: ou aceitava a situação em que estava ou baixava os braços e desistia. Por todo o percurso que tenho, a resposta é clara! Portanto, escolhi viver, escolhi aproveitar a vida e sou muito agradecida pelo que tenho. E sim, tenho uma doença que acontece a uma criança em 500 mil. Foi um totoloto mau que me aconteceu, mas ainda assim posso dizer que ultrapassei algumas barreiras e consegui chegar onde nem sequer imaginei alcançar no melhor dos meus sonhos!
E o que mudou desde que começaste a aceitar a doença?
Confesso que, numa fase inicial, não tinha tanta perceção do que era – uma doença progressiva, degenerativa. Numa fase inicial havia um diagnóstico, mas não tinha mesmo a noção do que é me iria tirar. Com o passar dos anos fui percebendo as capacidades físicas que deixei de ter. Depois veio a adaptação, necessária para conseguir dar a volta e ultrapassar estas limitações. Tive de aceitar a condição em que estou. Arregacei as mangas e fui à luta por tudo o que queria. Felizmente tive pessoas e pilares na minha vida, que me fizeram acreditar e não me deixaram desistir. E é graças a essas pessoas que sou o que sou hoje. Também agradeço muito a Deus. É uma parte de mim que me dá muito alento para o que preciso de enfrentar. Saber que existe algo mais, um propósito maior na nossa vida, é algo reconfortante.
No cruzamento entre o apoio que tiveste e esse poder mais transcendente, onde é que fica a tua força interior?
Creio que essa força interior não vem de mim. Vem de toda a capacitação que Deus me dá para enfrentar todas as dificuldades adversas. O facto de estarmos numa cadeira, por si só, não é um problema, mas o facto de não existirem acessibilidades já é um grande entrave. A tónica do problema não está em mim. Está na sociedade que, muitas vezes, nos reduz, limita nas ações e, portanto, isto é um grande problema de mentalidade. Nos dias de hoje, numa sociedade que se diz tão moderna, tão atual, tão sofisticada e evoluída, ainda existem barreiras e interferências àquilo que é o nosso desenvolvimento.
Chegada a esta fase da aceitação, alguma vez imaginaste alcançar este patamar de exigência desportiva?
Não! A vida também me surpreendeu. Claro que o importante é sairmos da nossa zona de conforto, ir à procura de mais e não nos conformarmos com o que já temos. Sou uma pessoa naturalmente insatisfeita. Vou sempre à procura de algo mais e isso é o que me faz mover. Não tenho medo de sair da zona de conforto, ir à procura de coisas diferentes. E esta postura fez-me evoluir. Se estava à espera de conseguir alcançar tanto? Não, nunca pensei, mas tem muito mais impacto na minha vida sabendo isso. E não estava à espera de conseguir tanto com uma modalidade como o boccia.
E como surgiu o boccia na tua vida, sendo que és formada em Ciências da Educação?
Surgiu no final da minha licenciatura em Educação Social. Tinha 20 anos, mas antes disso já tinha experimentado o boccia com 14 anos no FC Porto. Não gostei, não me identifiquei e fui adiando apesar da insistência. Nessa altura também não tinha muita cultura desportiva, não existia ninguém na minha família que fosse uma referência a esse nível. O desporto foi algo que esteve sempre à parte. Tive de me educar a ser atleta e isso é uma aprendizagem que se faz também. E então foi aos 20 anos, vencida pelo cansaço que aceitei o desafio de vir para o boccia, mas no FC Porto. A decisão de praticar desporto teve o seu impacto e foi decisiva pelo facto de, também, estar a representar o clube do meu coração.
Esse enamoramento tardio pelo boccia deve-se também ao FC Porto?
Sim, se o convite não tivesse sido feito pelo FC Porto muito provavelmente nunca teria tido esta ligação com a modalidade.
És atleta de boccia, mas a tua vida profissional está associada a este clube. Queres falar um pouco deste teu trabalho?
Depois de tirar o mestrado, tive a oportunidade de colaborar com o FC Porto, precisamente na secção de desporto adaptado. Trabalho mais numa vertente social no âmbito das nossas ações em contextos de demonstrações de boccia, de palestras, de contacto com instituições, escolas e prisões. Sensibilizamos para a diferença através do desporto.
Há uns tempos afirmaste que o boccia é sinónimo de super-ação. Que “superpoder” é este?
O desporto paralímpico tem de ser visto muito dessa forma, não por ser paralímpico, não por ser um desporto adaptado, não por estarmos a falar de pessoas com deficiência, mas sim por estarmos a falar de alto rendimento. É um conjunto de características que nos definem enquanto atletas e não no sentido de sermos super-heróis ou super-capazes, mas sermos pessoas que, ainda que tenhamos limitações, nos propomos a fazer algo. Temos metas e objetivos definidos para a nossa época desportiva, para o nosso ciclo paralímpico e trabalhamos arduamente para os conquistar. É nesse sentido que falo de “super-ação”, a de conseguir atingir aquilo a que nos propomos, de uma forma adaptada à nossa realidade.
Acabaste de falar em metas… torna-se imperativo questionar o que está previsto, nos teus horizontes, para os Paralímpicos de Paris.
Isso é o que me motiva a trabalhar e a regressar ao boccia com tanta vontade, depois de ter tido a minha filha. É um grande desafio. Competi no ano passado até aos cinco meses de gravidez e consegui uma medalha de ouro no Mundial. Achei que esse era o meu maior desafio! Agora, de facto, o maior desafio de todos é competir internacionalmente com a minha filha cá fora, porque acho que a concentração é outra, a exigência também é outra. Acho que estou a testar-me muito como atleta.
E sentes que as tuas conquistas e o lugar que ocupas no desporto adaptado nacional são um incentivo e um exemplo para outras meninas e mulheres com algum tipo de incapacidade física e motora?
Quero acreditar que sim, não no sentido de eu ser um exemplo. Mas, de facto, sou a única mulher da minha classe – BC4 - a competir internacionalmente. Há falta de mulheres no desporto de uma forma geral e, quando falamos do desporto adaptado, essa ausência do género feminino sente-se muito mais. É importante começarmos a estimular cada vez mais e trazer mulheres para o desporto. Claro que é muito complicado! Falo enquanto mãe porque o regresso ao boccia, à alta competição, é muito exigente física e emocionalmente!
Local de eleição para treinar?
No FC Porto.
Nos teus tempos livres o que fazes?
Conviver com os meus amigos e família. Gosto muito de ir à Foz, de passear à beira-mar especialmente naqueles dias de sol e calor. É uma zona que me inspira, tranquiliza e traz paz.
Que atleta escolherias para treinar contigo?
Teria de ser o Cristiano Ronaldo, é um pouco cliché, mas tenho mesmo curiosidade de perceber não só a questão da disciplina, mas também da força mental que ele tem para enfrentar tudo o que é exposto, toda a pressão e atenção.
Imagina que encontras numa garrafa perdida na praia com uma mensagem guardada. O que gostarias de ler?
Uma mensagem de esperança, de confiança em relação ao futuro. Sofremos por antecipação em relação àquilo que será o incerto da nossa vida. É confiar que, em cada dia que passa, vamos ultrapassando as limitações. Temos de viver mais o Hoje e não tanto o Amanhã. Enquanto mãe tenho feito muito esse exercício de não antecipar situações. Seria, pois, uma mensagem de incentivo à vida.
Texto: Sara Oliveira
Agradecemos à Carla Oliveira a cedência das fotografias.